segunda-feira, 7 de maio de 2007

Uma chegada atrasada, mas marcante

Muito tardio, na literatura portuguesa, o Surrealismo é representado por grandes poetas: Mário Cesariny de Vasconcelos, Mário-Henrique Leiria, Alexandre O'Neill, António Pedro, entre outros.
Terá ainda um enorme impacto na configuração do discurso poético da modernidade: de Herberto Helder a Gastão Cruz, Luiza Neto Jorge, Maria Teresa Horta, não esquecendo Ruy Belo, Casimiro de Brito e João Rui de Sousa, sentimos a presença dessa influência que muitos marcou, por exemplo, com as suas peculiares associações vocabulares livres, as relações semânticas insólitas e o primado da imaginação.

Sejamos todos bem-vindos a Elsinore de Cesariny, mas que podia bem ser a de Shakespeare...

You are Welcome to Elsinore

Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício
Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição


Entre nós e as palavras, surdamente,
as mão e as paredes de Elsinore


E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmos só amor só solidão desfeita


Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar



in Pena Capital, Assírio & Alvim, Lisboa, 2004


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